João Carlos Molina Esteves, o Jão, falou sobre o movimento punk, política e projetos futuros
“Foi um golpe de velhos aristocratas que não querem ver pobre em
avião. Para eles pobre tem que andar de ônibus, tem que se foder,
engraxar o sapato deles e servir a comida deles. Rui Barbosa dizia não
se iluda com pessoas de cabelo branco, pois os canalhas também
envelhecem”.
Com essa frase João Carlos Molina Esteves, 55 anos, ou simplesmente
Jão, guitarrista do Ratos de Porão e do Periferia SA, resume o cenário
político do Brasil após o golpe que colocou Michel Temer na presidência
da república. Fundador da lendária banda criada em 1981 em meio a
explosão do movimento punk no Brasil, Jão atendeu a reportagem
do Porém.net horas antes de um show do RDP no Jokers Pub, em Curitiba.
A formação atual com Jão na guitarra, João Gordo no vocal, Boka na
bateria e Juninho no baixo é a com mais longevidade ao longo dos 36 anos
de carreira do Ratos. Depois de tantas mudanças de integrantes (13 no
total), Jão diz que a tolerância e o respeito as individualidades de
cada um tem sido a fórmula. “São três veganos e eu sou o açougueiro da
banda”, brinca o guitarrista, que é um dos sócios do Underdog, um
bar-restaurante em São Paulo especializado em carnes. O prato principal é
a parrilla argentina.
Veia operária que permanece ativa no RDP, Jão falou da ascensão do
fascismo, da extrema direita e personagens caricatos como Jair
Bolsonaro, ao qual classifica como uma ‘toupeira’. “Tem um monte de
filha da puta que tem orgulho de um cara deste. Devem se identificar
pela toupeirice. Discuto nas redes sociais com esses babacas que
acreditam que a terra é plana, que Hitler era comunista. Os Bolsominions
da vida, esses escrotos que seguem MBL. Tem até punk que gosta de
Bolsonaro. Um cara deste não está entendendo porra nenhuma”.
Esse cenário político atual deve inspirar o próximo projeto do Ratos de Porão, como antecipa o guitarrista. “Estamos terminando de compor, pois o momento do Brasil é bem propício. Motivo para fazer letra tem”. O último álbum lançado pela banda foi Século Sinistro, em 2014.
Confira a entrevista na íntegra:
São 36 anos de carreira. Como manter a mesma pegada, atravessando gerações de fãs?
O Ratos de Porão nunca criou expectativa de sucesso, de exposição em
mídia. A própria correria foi mantendo a coisa viva. Não somos uma banda
popular nem dentro do rock, mas temos um público fiel no mundo inteiro.
Isso é gratificante. É legal você ver um cara da Sérvia, por exemplo,
que vai no seu show e diz: escuto sua banda faz tempo. Tem isso e tem o
fato da gente gostar do que faz, isso é o que mantém a banda viva. A
gente vê muita banda que pinta e depois de um ano some. Vamos pegar um
exemplo daquela época das bandas emo, o Restart. Os caras fizeram
sucesso, talvez ganharam em um ano mais do que eu ganhei na vida
inteira, mas os caras não conseguem viver sem aquilo, sem grana e as
facilidades que o sucesso traz. A gente já teve exposição em mídia, o
Gordo já foi apresentador da MTV, mas isso para o Ratos nunca foi um
retorno positivo. Somos uma banda que veio do punk, então o fato do
vocalista trabalhar na TV não trouxe sucesso, pelo contrário, trouxe
cobrança ideológica. A banda sempre tentou manter-se a parte disso,
inclusive o Gordo.
O Ratos passou por mudanças de integrantes e do som da banda. Fale dessas transformações e cobranças que receberam.
O lance da cobrança do estilo musical já foi pior, pois às vezes é
difícil para algumas pessoas assimilarem. Queira ou não, o Ratos deu a
cara para bater, deu um passo a frente, ninguém estava misturando punk
com metal quando a gente começou. Da parte do punk sempre teve aquele
lance dos caras torcerem o bico. O Ratos sempre fez discos diferentes um
dos outros, sempre mantendo o estilo da banda. Óbvio que teve outros
ingredientes que foram somados a nossa música, influências diversas
também. Tem banda como ACDC, Motorhead, Ramones, Cólera, que podem ficar
tocando a mesma coisa a vida inteira e se sentir bem com isso. Não é
meu caso. Gosto de fazer coisas que sejam relevantes para mim em
primeiro lugar.
E o que tem escutado?
Tem uns estilos que meio que doem no saco, bandas nessa linha tipo
Slipknot, tem umas guitarronas e tal, maior visual maneiro, mas eu não
consigo parar para ouvir. Não sei se estou ficando um velho chato.
Quando eu pego coisa nova para ouvir é banda tipo Slayer, que lança
sempre disco bom, Napalm Death, Testament, Exodus. Não são bandas novas,
são discos novos. Citei o new metal, que o cara vai cantando meio
‘amorosozinho’ e depois vai ficando ‘raivosão’. Sei lá, prefiro ouvir um
Johnny Cash.
Como é a relação com os demais integrantes do RDP?
Bem boa, viajamos junto para caralho. Viajamos mais juntos entre nós
do que com as nossas famílias. Respeitamos as individualidades. Sou o
único que não sou vegano. A gente tem nossa vida fora da banda e ninguém
fica andando junto para lá e para cá. Fora do lance do Ratos, cada um
tem sua vida e é bem diferente a vida de cada um. Isso é bom, pois na
época lá de atrás, quando a gente do Ratos andava toda hora junto, tinha
mais treta. Na época do Jabá [ex-baixista e um dos fundadores
1981-1993], do Spaghetti [ex-baterista 1981 a 1991]. A gente era jovem,
louco para caralho, a banda tinha mais exposição. Quando a gente fez
o Brasil [álbum lançado em 1989], a gente estava em gravadora grande,
saía em revista, éramos um bando de punk louco sem noção. Era mais
complicado, pois isso acaba desgastando.
Seu pai tinha uma oficina de pintura de carros, você
trabalhou de motoboy, com Kombi em transportadora. Podemos considerar o
Jão, a veia operária do Ratos?
Pode se dizer que sim. Hoje eu tenho um bar, que a especialidade é
carne, a parrilla argentina. Isso criou uma piada dentro da banda de que
o Ratos criou um açougue. Três são veganos e eu sou o açougueiro da
banda. Venho de família operária, o rock me deu muita coisa, mas nunca
me deu luxo. Consegui criar minhas filhas, viver e criá-las
honestamente. Criar filho com rock no Brasil é meio foda, ainda mais com
um som do tipo do Ratos.
Qual a diferença dos projetos e dos públicos do Ratos de Porão e do Periferia SA.?
O público do Ratos é mais eclético. Vai desde o pessoal do punk, do
hardcore, do metal, até uns perdidos que falam que é a banda do João
Gordo. Já o Periferia é algo mais direcionado musicalmente, não é tão
eclético. Fazemos um punk de protesto, hardcore old school. Essa é a
nossa pegada. Muita gente que não vai no show do Periferia, vai no show
do Ratos. E tem gente que vai no Periferia e não gosta do Ratos.
Vocês foram precursores do punk no Brasil e na época havia
rivalidade entre os punks de São Paulo (capital) e do ABC. Fale desse
período.
Era uma treta de gangue bairrista, uns se achavam mais punk que os
outros. Quando entrei no punk eu nunca tinha ido para o ABC. Pelo fato
do ABC ter as empresas multinacionais, as indústrias, tinha muito
punk working class, mais tinha muito skinhead, aquele lance
nacionalista. E isso também era motivo de briga. No fundo acho que todo
mundo gostava de brigar e de ter uma treta. Eu particularmente, o Jão,
nunca tive nada com os caras. Eu até achava que tinha umas bandas do ABC
bem mais fodas que as de São Paulo, tipo o Áustria. Quando teve o
Começo do Fim do Mundo [festival punk em 1982], no Sesc Pompéia, foi
tenso, pois juntou todo mundo, juntou punks de São Paulo e do ABC pela
primeira vez. O clima era de que iria dar merda. Os caras do ABC achavam
que a gente era playboy, mas não tinha playboy, a gente era da
periferia de São Paulo. Subúrbio e periferia é tudo a mesma coisa, gente
excluída da sociedade. Hoje já tem o lance ideológico, do tipo: sou
vegano e não ando com você, sou anarcopunk e não ando com você,
sou crust e não ando contigo.
Quais as histórias mais bizarras que lembra nestes 36 anos?
Coisas bizarras acontecem sempre. Mas tem umas coisas que são bem
loucas, se puxar no Youtube vai achar lá “Ratos: bolt of love”, a gente
tocando em um barco do amor em um lago na Finlândia. A gente tocando e o
barquinho chacoalhando. Esse ano fizemos uma turnê latino-americana em
lugares que nunca tínhamos ido. Costa Rica, El Salvador. É louco ver que
a gente tem público lá. Na Bolívia, por exemplo, teve um show com uns
moleques que tinham umas camisetas escritas Ratos de Porão a mão, pois
os moleques não tinham dinheiro para comprar e acho que nem chegava
nosso material lá. Isso é louco, pois remete a minha adolescência. Tinha
umas camisetas escritas “vida ruim”, “Ratos de Porão”. Me identifiquei
para caralho. Hoje, mesmo com esse mundo globalizado, tem um monte de
excluído. Se marcar está pior. A evolução é relativa.
Em 1989 vocês lançaram Brasil, com clássicos como Amazônia
Nunca Mais, Farsa Nacionalista, Máquina Militar, Crianças Sem Futuro.
Trace o Brasil de 1989 e o Brasil atual?
O momento atual do Brasil como sociedade está bem estranho. Não sei
até que ponto as redes sociais influenciaram nisso. Hoje em dia tem um
monte de filha da puta eleitor do Bolsonaro que tem orgulho disso,
orgulho de um cara que é a maior toupeira. Se identificam pela
toupeirice entre o candidato e o eleitor. Discuto nas redes sociais com
uns babacas que acreditam que a terra é plana, que Hitler era comunista.
O mundo tem muita informação hoje, na minha época você tinha que correr
atrás da informação. Era através de livros, livro te salvava. Hoje os
idiotas compram ideias prontas. A política no Brasil está bizarra, a
eleição do ano que vem é um negócio temeroso. As opções são brutas, até
Luciano Huck tentaram lançar. Depois do golpe, pois isso foi um golpe,
um golpe de velhos aristocratas que não querem ver pobre em avião. Para
eles pobres tem que andar de ônibus, tem que se foder, engraxar o
sapato deles, servir a comida deles. Olha o Temer, eu desejo muito mal
para esse verme filho da puta. Onde está aquela galera que estava
fazendo dancinha na Paulista pintado? Onde está essa gente? Essa galera
não está se sentindo enganada? Não é possível, o preço da gasolina para
mim é o mesmo que para eles. Olha esse lance trabalhista [reforma
trabalhista], eu não sou empregado, mas no meu bar eu tenho várias
pessoas registradas. Eu não concordo com isso ai e não vou fazer isso
com os caras que trabalham para mim. O bagulho foi um crime, um roubo,
uma exploração.
E o Dória?
Putz, o Doriana é triste hein malandro! Os caras pensaram que ele
iria colocar todo mundo de camisa polo Ralph Lauren na escola, caviar na
merenda, vai vendo. O cara é um patife, um marqueteiro. Nunca cuidou
nem da conta corrente dele, não sabe administrar nada. É capaz de um
bosta deste tentar ser candidato. Quem votou no cara lá em São Paulo não
quer dar o braço a torcer, assim como a galera que apoiou o golpe. Os
caras tem tipo orgulho, jamais vão admitir que estão errados. O cara
burro não admite nunca, ele vê que a gasolina está mais de quatro
contos, vê os direitos trabalhistas roubados, vê professor não ganhando
salário, mas não admite a merda toda. Pega o Alckmin, outro patife da
pior espécie. Já dizia Rui Barbosa, “não se iluda com pessoas de cabelo
branco, pois os canalhas também envelhecem”.
A repressão, a violência policial, sempre estiveram nas letras do Ratos. Diante do atual cenário, para onde podemos caminhar?
Acho preocupante todo esse lance de repressão. Eu sempre posto lá
[Facebook], a polícia militar tem que acabar, porque esse formato aí é
da ditadura. Estamos no mesmo nível daquela época, vai professor
protestar porque não está ganhando salário e leva bala de borracha,
spray de pimenta no olho. Quando eu posto isso sempre vem os
Bolsominions dizer: “quem tem medo de polícia é bandido (sic)”. Essas
frases prontas. Não sou bandido, mas sou cabreiro com a polícia sim.
Quando o Ratos estava prestes a completar 30 anos foi lançado
o documentário Guidable. Recentemente vocês fizeram um show com outras
bandas, como Resto de Nada, Mercenárias, AI-5, em comemoração aos 40
anos do punk rock. E para os 40 anos do RDP, o que vislumbrar?
Quando o Ratos fez 30 anos eu juntei quase todo mundo que tocou no
Ratos, faltou só o Pica Pau [ex-baixista 1995 a 1999]. Era para ter
saído um DVD disso ai. Contamos a história da banda através da
discografia com as formações da época. Mas deu merda no áudio e
desistimos de lançar. Sobre os 40 anos têm quatro anos para gente
pensar, mas vamos comemorar de alguma forma sim.
Vocês estão no estúdio compondo?
Estamos terminando de compor, mas cada um tem sua vida, seus projetos
paralelos, mas estamos querendo fazer disco novo por aí, pois o momento
do Brasil é bem propício. Motivo para fazer letra tem. O Ratos sempre
foi chato com a gente mesmo neste lance de composição. A gente vai
gravar o disco na certeza que tem que estar legal. A gente prefere
demorar um pouco mais para lançar um disco ao invés de fazer um bagulho
nas coxas.
Nestes 36 anos de banda, se pudesse voltar no tempo, o que faria diferente?
Não fumaria crack. Isso atrasou meu lado, perdi amigos. Vida pessoal
ficou na merda, devendo para traficante. Mandamos o Jabá embora da
banda, que era o fundador junto comigo. Esse tipo de coisas. Essas
cagadas se eu não pudesse fazer seria bem melhor. Foi uma fase bem
crítica, não sei como a banda não acabou e até conseguiu produzir
coisas.
Edição: Gibran Mendes
Via: Brasil de Fato
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